A máquina

"Um matemático é a mais perfeita máquina, seu cérebro é pura lógica, seus membros arcadas geométricas de rara perfeição e suas formas desenhos feitos sob preciso cálculo....traduzindo: Divinamente perfeito!!!!!!!!"

terça-feira, abril 19, 2011

O Insucesso da Matemática - Prof João Pedro da Ponte

MATEMÁTICA: UMA DISCIPLINA CONDENADA AO INSUCESSO?
                                                                                         João Pedro da Ponte

            Uma sondagem feita aos portugueses maiores de 15 anos em Maio de 1994 sugeria que as coisas até não vão mal na disciplina de Matemática. Aparentemente, a maioria das pessoas que responderam não quis dar parte de fraco. Mas, dois meses depois, os resultados das provas de aferição e das provas específicas eram de tal modo negativos que voltaram a reinstalar a polémica.
            Como bem o sabem os professores, o insucesso nesta disciplina é uma realidade incontornável. Reconhece-se não só pelos maus resultados dos alunos em testes e exames, mas muito especialmente pela sua generalizada dificuldade na resolução de problemas, no raciocínio matemático, às vezes nas tarefas mais simples e, sobretudo, no seu desinteresse crescente em relação à Matemática. O insucesso não só existe como tende a agravar-se. Mas afinal quais são as suas causas? E como pode ser combatido?

OS VÁRIOS PONTOS DE VISTA SOBRE O INSUCESSO
             Como fenómeno educacional, e portanto social, o insucesso é uma realidade complexa, com múltiplas causas, todas profundamente interrelacionadas. Cada um dos actores sociais que intervém ou acompanha o processo de ensino-aprendizagem tem, naturalmente, a sua visão do problema.
            Para os professores, as causas do insucesso dos seus alunos são frequentemente a sua “má preparação” em anos anteriores. Por um raciocínio recorrente chega-se rapidamente ao 1º ciclo, daí às insuficiências da educação pré-escolar... Apontam igualmente o facto de muitas famílias terem um nível socio-económico e cultural muito baixo — ou terem um nível aceitável mas não incentivarem suficientemente os alunos. Os professores indicam que os alunos não se esforçam, não prestam atenção nas aulas nem estudam em casa. Contestam também que os currículos são excessivamente longos e que a necessidade do seu cumprimento obriga a deixar para trás os alunos mais “lentos”. Por vezes, reconhecem que há certas matérias mais “áridas”. Responsabilizam assim os alunos, as famílias, os professores dos anos anteriores, os currículos e as características próprias da disciplina.
            Para os alunos, a principal razão do insucesso na disciplina de Matemática resulta desta ser extremamente difícil de compreender. No seu entender, os professores não a explicam muito bem nem a tornam interessante. Não percebem para que serve nem porque são obrigados a estudá-la. Alguns alunos interiorizam mesmo desde cedo uma auto-imagem de incapacidade em relação à disciplina. Dum modo geral, culpam-se a si próprios, aos professores, ou às características específicas da Matemática.
            Para os pais e para a opinião pública em geral, a responsabilidade está nos professores que não ensinam convenientemente — ou por falta de preparação ou porque não assumem o necessário nível de exigência — e nos alunos que não se esforçam o suficiente. Algumas vezes refere-se o peso de factores socio-culturais. Mas todos reconhecem que a Matemática é uma disciplina difícil e que a sua aprendizagem tem trazido grandes dificuldades em todas as gerações.
            As causas apontadas andam todas à volta dos mesmos pontos, muito embora ênfases diferentes: a disciplina, o currículo, o professor, o aluno, razões de ordem social e cultural. Por vezes as causas aparecem misturadas com sintomas — com aspectos que são reveladores de insucesso mas que não o explicam só por si. Em todos os casos as características da disciplina estão sempre presentes. E é curioso verificar que os alunos, como elo fraco do sistema, são os únicos que aparecem dispostos a aceitar uma quota parte da responsabilidade.

UMA VISÃO ALTERNATIVA SOBRE AS CAUSAS DO INSUCESSO

            A investigação em educação matemática pode proporcionar uma outra perspectiva sobre este problema. A razão fundamental porque há insucesso em Matemática é que esta disciplina é socialmente concebida precisamente para conduzir ao insucesso. Resulta da função que lhe é atribuída no sistema educativo e que é interiorizada por todos os intervenientes no processo de ensino-aprendizagem. Na verdade, o grande papel da Matemática é o de servir de instrumento de selecção dos alunos. Esta disciplina presta-se às mil maravilhas para esta função, por três grandes razões:
            a) a sua linguagem, os seus métodos e os seus resultados são usados (directa ou indirectamente) nas mais diversas áreas científicas e actividades profissionais — a nossa sociedade está cada vez mais matematizada;
            b) sendo vista como a ciência do certo e do errado, proporciona uma invejável auréola de objectividade — ou se sabe ou não se sabe responder a determinada questão, ou se consegue ou não resolver um dado problema;
            c) é uma ciência que goza indiscutivelmente de um enorme prestígio, como uma das criações mais nobres do espírito humano — poucos se atreverão a pô-la em causa.
            Assim, a Matemática é ensinada de modo a ser difícil. Tudo começa pelos currículos, que apontam para a abstracção precoce e privilegiam a quantidade dos assuntos em relação à qualidade da aprendizagem. Os novos currículos actualmente em processo de generalização marcam a este respeito um importante progresso, prevendo por vezes o uso de metodologias inovadoras, orientadas para a participação activa dos alunos na descoberta dos conceitos; mas quando é preciso “ganhar tempo” a primeira coisa que se suprime são essas metodologias.
            A estrutura da escola e do sistema educativo proporcionam uma visão da Matemática como um assunto compartimentado em numerosos tópicos e subtópicos sem relação entre si. As aulas de 50 minutos quase sempre em salas diferentes não favorecem a realização de actividades que exigem uma maior concentração e um tempo superior, nem o trabalho em grupo, nem a utilização de novas tecnologias. O número de horas dedicado à disciplina é claramente insuficiente, nomeadamente no ensino secundário. Finalmente, o forte controlo proporcionado pelos exames, estabelecendo os padrões das competências desejadas, constitui uma forte pressão sobre os professores que os leva a dedicarem-se quase por exclusivo ao ensino (por vezes ao treino) daquilo que é mais susceptível de sair neste tipo de provas.
            Com a massificação do ensino acabou por se confundir a capacidade Matemática com o subconjunto muito restrito das capacidades que podem ser facilmente avaliadas através de testes escritos. Aquilo que se ensina e aquilo que se aprende é uma caricatura da Matemática tal como é praticada pelos matemáticos que fazem investigação, quer em domínios de Matemática pura, quer em problemas de Matemática aplicada. O que se passa na aula de Matemática resulta num jogo sem qualquer sentido para os alunos.
            A certa altura, as concepções que os alunos formam acerca do que é a Matemática e como se estuda esta disciplina constituem-se também como grandes barreiras à aprendizagem. Como resultado de anos de experiência de memorização e de resolução de exercícios repetitivos, os alunos encaram a Matemática como um simples amontoado de regras sem qualquer relação entre si. Querem saber como se faz cada tipo de exercícios mas acham que nem vale a pena tentar perceber a lógica que liga os diversos assuntos.
            Para os professores, o cálculo e a manipulação simbólica tendem a ser vistos como a base de toda a aprendizagem — o que constitui reconhecidamente uma visão redutora da Matemática. A ideia básica é a de que quem não sabe calcular não pode fazer o mais pequeno raciocínio. Deste modo, os professores tendem a insistir numa abordagem formalizante que só afasta ainda mais os alunos da disciplina. Ignora-se dum modo geral a importância da diversificação das representações, a necessidade de tomar os conhecimentos dos alunos como ponto de partida das aprendizagens e a importância da interacção social na criação dos novos saberes, persistindo-se numa tradição pedagógica que tende a perpetuar a imagem da Matemática como algo de misterioso e inacessível.
            Reforçam-se assim as concepções sobre a Matemática dominantes na sociedade: é uma disciplina intrinsecamente difícil, sendo, em última análise, desculpável ter maus resultados. Para a maioria dos intervenientes — professores, alunos, pais, responsáveis da administração escolar — tudo isto resulta da própria natureza da Matemática. Há apenas que regular as coisas de modo a evitar excessos.

QUE SOLUÇÕES?

            A concepção que se tem da Matemática e os objectivos que se perseguem no seu ensino surgem deste modo como os elos fundamentais por onde se pode agir em relação ao problema do insucesso. É possível reorientar o ensino desta disciplina de modo a torná-la uma experiência escolar de sucesso. Isso pressupõe, naturalmente, uma intervenção aos mais diversos níveis, incluindo as práticas pedagógicas, o currículo, o sistema educativo e a própria sociedade em geral — promovendo uma visão da Matemática como uma ciência em permanente evolução, que tanto procura responder aos grandes problemas de cada época como é capaz de gerar os seus problemas próprios. Assim, torna-se necessário:
            • A criação duma imagem diferente da Matemática, como actividade humana multifacetada, susceptível de proporcionar experiências desafiantes a todas as pessoas;
            • A divulgação duma visão mais ampla do que são os processos de pensamento e as competências próprias da Matemática;
            • A formação dos professores, virada não apenas para a actualização científica e pedagógica geral, mas sobretudo para uma nova visão da Matemática e das formas de trabalho que favorecem a sua apropriação pelos alunos;
            • A reformulação dos currículos, com uma efectiva valorização da componente metodológica e, no ensino secundário, uma adequada diferenciação entre os programas de alunos de diversas áreas;
            • O enriquecimento das práticas pedagógicas, valorizando-se o trabalho de grupo, a realização de projectos, as actividades exploratórias e de investigação, a resolução de problemas, a discussão e a reflexão crítica;
            • A diversificação das formas e instrumentos de avaliação, quer formativa quer sumativa;
            • A alteração do sistema de acesso a ensino superior, diversificando-se os indicadores de selecção.

CONCLUSÃO

            O insucesso em Matemática não depende apenas das características da disciplina nem das concepções dominantes acerca da sua aprendizagem. Em boa parte ele resulta igualmente do insucesso escolar em geral. Sem se renovar profundamente a escola, tornando-a um espaço motivante de trabalho e de crescimento pessoal e social, o problema do insucesso tenderá a perpetuar-se, na Matemática como nas restantes disciplinas.
            Mas é fundamental perceber-se que não são as características supostamente intrínsecas e “imutáveis” da Matemática que constituem a principal razão de ser do agravamento do insucesso nesta disciplina. É o papel social que lhe é atribuído, é o modo como com ela se relacionam os diversos actores e é por eles vista. Para combater esse insucesso a principal medida passa por alterar este papel, retirando-lhe a função selectiva e mostrando como esta ciência pode constituir — para todos — uma actividade intelectual gratificante e enriquecedora.


Ponte, J. P. (1994). Uma disciplina condenada ao insucesso? NOESIS, 32, 24-26. Disponível em: < http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/jponte/artigos-por-temas.htm >. Acesso em 05 out. 2010.

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