A máquina

"Um matemático é a mais perfeita máquina, seu cérebro é pura lógica, seus membros arcadas geométricas de rara perfeição e suas formas desenhos feitos sob preciso cálculo....traduzindo: Divinamente perfeito!!!!!!!!"

terça-feira, abril 19, 2011

Estórias Matemáticas

Sargu e a arte de calcular na areia
Alejandra Soto Ferrari




Numa terra muito distante, no Oriente, vivia um
jovem de grandes ideais e muitos sonhos que trabalhava
desde o amanhecer, cultivando a terra.
Almejava sem descanso que seu destino mudasse;
desejava ter a coragem e a sorte daqueles
incansáveis viajantes que percorriam terras longínquas
pelos confins do universo, apreciando novos
pratos e aromas e admirando cores e perfumes
jamais imaginados.
O nome desse rapaz era Sargu, conhecido
como “o obstinado” devido a sua incansável disposição
de mudar seu destino. Era filho de camponeses
e tinha apenas 16 anos. Apesar dos
grandes esforços dos pais para que se dedicasse
à terra, como eles, Sargu, sempre que podia,
escapava de seus trabalhos no campo e subia ao
alto de um morro, onde deixava a imaginação
voar; olhava o horizonte tentando ver tudo que
lhe era proibido.
Todos os dias eram iguais para Sargu; terminava
sua jornada e se punha a sonhar, esperando
algum acontecimento que mudasse sua vida, ansiando
por deixar de arar a terra e ir em busca
das aventuras que, mais de uma vez, ouviu dos
mercadores que chegavam a seu povoado.
Em um dourado entardecer, Sargu, absorto
em seus sonhos, avistou ao longe as figuras de
vários homens e animais. À medida que o grupo
se aproximava, as imagens se tornavam mais claras
e eram tantos camelos e asnos, que não poderia dizer quantos. 

Viu muitos e logo começou a fazer linhas e outros
sinais na areia para registrar em algum lugar o que via. Fez tantas marcas
que não podia acreditar; sem dúvida o senhor que vinha em um dos
camelos, no início da caravana, era um homem rico.
Eram por volta de cem camelos e asnos carregados com todo tipo de
especiarias, tecidos e vasilhas, propriedade de um rico mercador apelidado
de Mestre, cujo verdadeiro nome era Fargot. Era um homem de aproximadamente
50 anos, de poucas palavras e poucos amigos, de voz áspera e olhar
penetrante. Sua pele estava endurecida pelo sol e pela areia e, apesar de sua
riqueza, era um homem de modos e gostos simples.
Viajava acompanhado da família, constituída por três esposas, vários filhos
e sua mais preciosa jóia, sua filha Tesia, de 15 anos, além de muitos
empregados que o serviam e viviam sob sua proteção.
A caravana, que nunca tinha sido tão numerosa, passava ano após ano
pelas terras onde morava Sargu, estabelecendo-se na margem do rio e oferecendo
suas mercadorias aos habitantes das aldeias próximas.
Quando Sargu notou Tesia entre a multidão, ficou cativado pela beleza e
encanto daquela donzela de grandes olhos amendoados e soube que finalmente
havia chegado o momento pelo qual tanto esperara. Era hora de empreender
o vôo, de conhecer terras desconhecidas, lugares nos quais só poucos
haviam estado, mistérios que ninguém havia imaginado; era hora de aceitar
o convite que a cada tarde lhe fazia o horizonte. Tesia precisava conhecêlo,
e conquistá-la seria seu grande feito. Andou incansavelmente pela feira
que havia sido instalada no local, observando com grande interesse as mercadorias
dos comerciantes, e permaneceu horas tentando ver alguma transação.
Todas elas eram realizadas pelo Mestre.
Cada vez que se fazia uma venda importante, chamavam-no e ele tirava
uma bolsa de pano que guardava sob as roupas e, pondo-se de joelhos, fazia
com grande rapidez sulcos na areia, nos quais colocava pequenas bolinhas de
metal. Logo dizia as quantias finais, ante a perplexidade de todos os que o
observavam. Geralmente, os compradores e seus ajudantes utilizavam cordas
com nós, sementes ou pequenos pedaços de madeira para fazer as contas,
mas ninguém superava a exatidão e rapidez do Mestre.
Quando Sargu notou o que Fargot fazia, ficou maravilhado: achou
que ele era um mago ou um bruxo e se propôs a aprender com o Mestre,
mesmo que isso implicasse ter que deixar os seus familiares para se unir
à caravana.

No dia em que se desfez a feira e o grupo se dispôs a partir, Sargu
implorou ao Mestre que o levasse, que lhe ensinasse sua magia, e prometeu
trabalhar só por leito e comida. Fargot, comovido com tamanha insis15
tência, relutou por um momento, dado o modo como o rapaz olhava para
sua querida filha; entretanto, algo nesse moço o fazia sentir como se olhasse
para si próprio, e assim, mais tarde, permitiu que ele se juntasse à caravana;
porém lhe disse: “Minha arte não é magia e tampouco sou mestre,
como me chamam por aqui, portanto não posso ensinar-lhe, só posso dizer
que me observe e aprenda: conte os dedos das mãos, uma, duas vezes
e vá sempre na direção do seu coração”.
E, assim, Sargu se uniu ao grupo e foi rapidamente aceito por todos, graças
a sua tão particular maneira de pensar e seu espírito solidário. Logo
tratou de se aproximar de Tesia, estabelecendo-se entre eles uma bela amizade,
que não demorou a se transformar em verdadeiro amor.
Sargu temia que o Mestre o expulsasse da caravana por sua origem humilde
e logo se propôs, com determinação, ser digno do amor de Tesia. Enquanto
a caravana percorria diversas regiões, transcorreu bastante tempo, e
todas as noites em que demorava para conciliar o sono Sargu, como se estivesse
jogando, fazia sulcos na areia, nos quais colocava pedrinhas arredondadas,
imitando os gestos de Fargot.
Uma noite, cansado de não entender, relembrou uma conta feita pelo
Mestre e conseguiu contar como ele: 123 camelos e 52 asnos, que eram a
totalidade de animais que possuíam. Por fim havia entendido: o que Fargot
fazia era decompor as cifras sobre os sulcos na areia mediante as bolinhas.
Primeiro contava, depois decompunha e finalmente somava. Mas
como fazia isso?
Sargu percebeu que contar até dez era muito importante, daí o Mestre
ter-lhe dito para contar os dedos de ambas as mãos. Em cada sulco havia, de
um modo especial, um 10 implícito. Então se lembrou das outras palavras do
Mestre: “vá sempre na direção do seu coração” e as repetiu uma e outras
vezes, até que, em um segundo – zás –, descobriu: tratava-se de contar da
direita para a esquerda!
Desse modo, Sargu conseguiu montar o seguinte esquema na areia: tinha
123 risquinhos que representavam a quantidade de camelos; ele os agrupou
de 10 em 10, fazendo um círculo em cada grupo, formando assim 12 grupos e
sobraram 3 riscos sem agrupar. Então fez um círculo maior que continha os
10 primeiros grupos e assim sobraram 2 grupos de 10 risquinhos, mais os 3
riscos avulsos.

Os 3 riscos avulsos foram representados por 3 pedrinhas colocadas no
primeiro sulco, à direita do grupo de sulcos que havia previamente feito na
areia. Os 2 grupos de 10 riscos foram representados por 2 pedrinhas, colocadas
no sulco seguinte, à esquerda do anterior, e finalmente ele pôs 1 pedrinha à
esquerda de todas as anteriores, em representação do grupo maior, de 10 grupos
de 10 riscos cada um. Desse modo obteve o seguinte sobre os sulcos:
Fez o mesmo para contar os asnos e obteve o seguinte:
O Mestre normalmente utilizava 3 grupos ou mais de sulcos, dependendo
do tamanho da soma, e usava um sulco independente para os resultados.
Desse modo Sargu transportou todas as bolinhas para um terceiro conjunto
de sulcos e obteve:
Sargu estava simplesmente eufórico. Havia descoberto o grande mistério
do Mestre e poderia ser um sábio, como tanto almejara, e então ser
digno do amor de Tesia. Praticou muitas vezes até que lhe pareceu um
jogo. Começou a não precisar de tantos sulcos e logo chegou a fazer as
contas em um só grupo, no qual ele diferenciava as quantidades usando
pequenos pedaços de madeira para separá-las.

Um dia o Mestre caiu enfermo de um estranho mal, suas pernas não
respondiam, e a caravana precisou permanecer longos meses parada no deserto,
nas proximidades de um pequeno riacho. Reinou a fome e a desolação
e as vendas caíram consideravelmente devido ao isolamento do grupo. Por
necessidade, venderam muitos camelos e asnos a um preço bastante baixo.
A comida e o gado ficaram cada vez mais escassos e as barras cunhadas
de prata, poupadas em épocas melhores, desapareceram por completo ao serem
trocadas por mercadorias de primeira necessidade nas aldeias vizinhas.
Foi então que passou pelo acampamento um conhecido estelionatário, que
chamavam de O Príncipe Negro, e seu bando de agiotas, vindos da cidade
de Nínive. Esse homem e seu séquito souberam da desventura da caravana
do Mestre e viram no desolado grupo a possibilidade de um grande negócio,
no qual ganhariam muito.
O Príncipe Negro ofereceu uma quantidade tentadora de barras de
prata pela compra de algumas especiarias e tecidos e da maior parte dos
camelos e asnos que sobraram, além de um grande dote para levar consigo
a belíssima Tesia.
O débil Fargot não tinha forças para se pôr em pé, nem mesmo para
ajoelhar-se para comprovar as contas do que deveria receber. Foi então que
Sargu interferiu habilmente, entregando ao Mestre, em seu leito, uma tábua
de argila na qual havia talhado vários sulcos verticais paralelos, que imitavam
perfeitamente os sulcos na areia. Sargu explicou ao Mestre, com todos os
detalhes, o tremendo logro a que se exporia se aceitasse o negócio proposto
pelo Príncipe Negro.
Fargot ficou perplexo diante da exatidão das contas e da habilidade e
perícia do rapaz para fazê-las, de modo que muito satisfeito e agradecido não
aceitou o negócio, e os malfeitores fugiram sem deixar rastros.

O Mestre abençoou Sargu e lhe disse:
– Agora sou eu quem lhe pede para ficar e ensinar a mim e aos meus o
que aprendeu. Tenho sido muito egoísta em querer que ninguém mais saiba
sobre a arte de contar na areia. Com o seu invento poderei fazer as contas
mesmo no meu leito. Você aperfeiçoou minha arte e é melhor que eu. Peça
o que quiser, você é um obstinado muito inteligente.
Sargu, emocionado, pensou por alguns instantes e respondeu:
– Quero ficar ao seu lado para sempre, ser seu sócio e amigo. Além disso
quero a mão de sua filha para que me abençoe com sua descendência e,
acima de tudo, quero ser um mestre e ensinar pelo mundo a arte de calcular.
Fargot atendeu aos desejos do rapaz, mas bem no fundo de seu coração
sentia que seu fim se aproximava. Como sua enfermidade o consumia len18
tamente, deixou seu destino e o dos seus nas mãos do rapaz, permitindo que
se festejasse o casamento entre ele e sua filha.
Graças a Sargu puderam continuar sendo os prósperos e ricos mercadores
de sempre, só que agora levavam uma escola errante, aberta a todos que
quisessem aprender a contar no ábaco, nome que se deu ao sistema utilizado
por sulcos e bolinhas sobre a areia.
Sargu era o Grande Mestre, ensinava incansavelmente e repetia:
– Cada bolinha no primeiro sulco à direita corresponde a uma unidade;
cada bolinha no segundo sulco, indo para a esquerda, significa
10 unidades; cada bolinha no terceiro sulco corresponde a 10 unidades
de 10, isto é, 100 unidades, e assim sucessivamente. Recordem:
Para somar ou subtrair dois números, diferenciamo-los separando-os
por pedacinhos de madeira ou outro material similar, mas nunca deve
haver mais que 9 bolinhas em cada sulco.
Por fim Fargot morreu e deixou todos os seus bens para Sargu. Fargot
cuidou para que nada faltasse às suas mulheres e aos seus adorados filhos e
descendentes. Suas últimas palavras expressaram seu desejo de que a escola
errante jamais se detivesse e que seus ensinamentos atingissem os confins
do Universo, sem distinção de nenhum tipo, nem social nem racial.
É por isso que Sargu decidiu destinar o resto de sua existência
à difusão e ao aperfeiçoamento do ábaco, que foi evoluindo,
pouco a pouco, ao passar pelas diferentes culturas e
civilizações do Oriente e do Ocidente. Porém, em essência,
o ábaco permanece o mesmo, e graças a ele se deu um
importante passo em Matemática, conhecido como a notação
com valor posicional (o valor de uma bolinha depende
do lugar ou sulco que ocupa).


Sargu percorreu os lugares mais incríveis com seu invento, visitou
a China e a Índia, entre outros lugares da Ásia, onde, dizem, se aperfeiçoou
ainda mais na arte do ábaco. Desenhou-se um ábaco com bolinhas
sobre eixos fixos, que, além de ser mais cômodo, uma vez que evitava o
constante cair das bolinhas, facilitou as operações com quantidades maiores.
Temos informação de sua existência no Oriente só a partir do século XIII
d.C., de onde, supõe-se, teria passado ao Japão com outras modificações.
O ábaco que Sargu difundiu se firmou fortemente na Mesopotâmia devido
à complexidade de sua escrita, repleta, particularmente na numeração, de
símbolos incômodos e confusos.
Também se difundiu na maioria das terras civilizadas. O ábaco utilizado
na Roma antiga era metálico, em geral de prata ou bronze, e era formado por
dois conjuntos de sulcos paralelos, um sobre o outro. No conjunto dos sulcos
inferiores havia 4 bolinhas em cada um, enquanto no conjunto dos superiores
havia uma só bolinha. A bolinha do sulco superior representava 5 vezes a
bolinha correspondente no sulco inferior. Assim o calculista podia representar
qualquer número.
À direita do ábaco de metal havia um conjunto separado de sulcos utilizados
para se trabalhar com frações, o que faz sentido, já que os romanos
dividiam sua moeda em quartos.
A palavra que os romanos usavam para denominar as bolinhas ou pedrinhas
era calculus, do latim (quem não ouviu falar de cálculos renais?), da
qual vem nossa palavra calcular.
Muito tempo depois, na época de Cólon, alguns comerciantes e donos de
negócios do oeste da Europa ainda utilizavam tabuleiros de contas, que traziam
algumas modificações em relação ao antigo funcionamento, mas obedeciam
aos mesmos princípios do ábaco da antigüidade.
Os ábacos modernos, chineses, japoneses e russos, chamados respectivamente
de Swa Pan, Soroban e Scoty, ainda funcionam com grande facilidade
e rapidez nos seus países, embora seu uso esteja condenado a desaparecer,
devido à utilização crescente das calculadoras.

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